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Quais os 6 discos fundamentais da viola caipira instrumental?

vinimunizviola

7 de junho, 2023

Viola caipira instrumental

A viola caipira instrumental é algo de certo modo recente. A história discográfica da viola esteve mais relacionada com a canção, especialmente a canção sertaneja e caipira do que com a música instrumental. Porém, a partir dos anos de 1960, a dimensão instrumental começa a ganhar corpo pelas mãos de importantes violeiros e violeiras.

Neste vídeo quero comentar seis discos muito importantes na construção desse gênero. Será que estará do seu violeiro ou violeira preferida? Assista e descubra!

O gênero da viola caipira instrumental e seus fundadores:

A FANTÁSTICA VIOLA DE RENATO ANDRADE (1977)

viola caipira instrumental
A fantástica viola de Renato Andrade – (Chantecler – 1977)

O primeiro disco não poderia ser outro senão “A fantástica viola de Renato Andrade” do mestre violeiro Renato Andrade, lançado em 1977 pela gravadora Chantecler. É o primeiro disco do Renato e pode ser considerado o álbum que realmente assentou as bases para a dimensão da viola caipira instrumental.

O disco conduzido integralmente pela viola protagonista e pelo violão de acompanhado do NOME já revela a potência musical e técnica de Renato Andrade, nessa altura da vida com 45 anos. As composições passam por vários ritmos tradicionais da viola caipira instrumental de Minas Gerais, e o todo o centro sul do Brasil.

São somente ritmos caipiras? Não! Aliás, provavelmente a nomenclatura música caipira não seja a mais adequada para tratar de Renato Andrade, visto que o toque de viola em Minas Gerais possui uma dimensão própria e é dessa fonte que Renato bebeu por toda a vida. Toque da Inhuma, toque do Rio Abaixo, toque do lundu entre outros são algumas das referências que encontramos em Renato. 

Outra dimensão musical que está no seu fazer musical é a música clássica européia. Essa dimensão não está necessariamente explícita no âmbito harmônico, melódico ou no repertório, mas sim no tratamento dado por Renato ao fazer musical. No seu modo de tocar é possível perceber que para ele, ter uma sonoridade transparente, polida é um tratamento associado à música clássica. Se isso é de fato um tratamento da música clássica européia, cabe um debate, mas o que vale ressaltar é a leitura que o artista fazia da sua obra e suas referências.

E essa fusão o maestro e compositor Guerra-Peixe ao escrever a contracapa do disco, chamou de “Musical Armorial mineira“. Alusão ao movimento iniciado anos antes em Recife que visava a construção de um repertório clássico brasileiro a partir dos gêneros tradicionais brasileiros e elementos da música clássica européia, especialmente dos períodos renascentista e barroco. Porém esse nome não vingou.

O certo é que para o mineiro de Abaeté que nasceu em 28 de agosto de 1932, sua música carrega uma identidade independente que o posiciona num lugar muito particular na história.

Aliás, falando do toque de viola do Renato, a grande característica é uma sonoridade transparente, com muito volume e potência sonora. Tudo soa muito limpo e cristalino e se por um lado as estruturas harmônicas não fogem dos centros tonais escolhidos, é no fraseado melódico intrincado, cheio de ornamentos e ligeirezas que o violeiro demonstra o seu virtuosismo técnico que seria sua marca por toda a carreira.

Não é nenhum exagero dizer que esse disco abriu o caminho que todas as gerações seguintes trilharam.

HELENA MEIRELLES (1993)

Viola caipira instrumental
Helena Meirelles (Eldorado, 1993)

Faço um salto cronológico aqui para tratar de uma injustiça! 

Nesses mesmos anos 70 em que Renato Andrade lança seu disco, uma outra violeira já deveria ter sido reconhecida, porém sendo mulher pobre, nascida nos rincões do Brasil, foi desprezada durante toda a vida, sendo reconhecida somente em 1993 e ainda assim por uma revista estadunidense de música. Me refiro claro à mestra Helena Meirelles.

Nascida em 1924 num distrito de Nova Andradina, Mato Grosso do Sul, no coração da região do Pantanal, Helena cresceu no mundo rural, entre peões, comitivas, e violeiros. Num ambiente extremamente machista, a viola lhe foi negada, mas isso não a impediu de ter o instrumento nas mãos, às escondidas. Depois de um casamento forçado aos 17 anos, fugiu do marido para se casar com um músico paraguaio. Deixou o novo marido determinada viver tocando viola nos bares e festas da região.

Com uma vida pessoal turbulenta, esteve longe da família por quase 30 anos até ser reencontrada, em situação vulnerável, com a saúde delicada, por uma irmã e assim passar a viver em São Paulo no início dos anos 90. E justamente um de seus sobrinhos, Mário Araújo, que seria depois seu primeiro produtor, foi quem enviou à revista Guitar Player algumas fitas caseiras, com Dona Helena tocando. Esse é o ponto de virada em sua vida. O reconhecimento por fim chegou. Elogios de Eric Clapton, o pôster com sua palheta ao lado das palhetas de BB King, Jimi Hendrix e George Benson. 

E toda essa história está presente no seu primeiro disco lançado em 1994 e por isso leva o seu nome Helena Meirelles. Ao final, aqui a história e a música se fundem. O que escutamos são guarânias, polcas paraguaias, chamamés, mas quando nos aproximamos mais, escutamos um fraseado inventivo, com diversos graus de sutileza do toque das palhetas feitas de chifre. A sensação é que para Dona Helena, o importante era o principal. Seus solos são direto ao ponto. Transparentes, limpos e os floreios, arrastes e ligados são usados sem exageros.

O que ouvimos é uma viola dinâmica com personalidade forte, que vai flutuando por cima do acompanhamento, controlando o discurso e o protagonismo sem perdê-lo de vista. Algo que não é simples. Não é fácil ser solista. Aí está uma parte do seu virtuosismo: a segurança no toque, a clareza do discurso e da sonoridade.

A outra parte é a capacidade de levar o ouvinte a um outro universo, ao mundo rural pantaneiro mais profundo, a música da fronteira, mostrando a dureza da vida e a beleza exuberante como cenário. Tudo isso feito com música instrumental. Esse não é somente um disco, é também um documento histórico, uma fotografia, um filme do Brasil de dentro. A tristeza é saber que só descobrimos isso tudo em 1993 e graças aos EUA e não por nós mesmos…

ALMIR SATER | INSTRUMENTAL I (1985)

viola caipira instrumental
Almir Sater – Instrumental I
(Som da gente, 1985)

Se estamos no Pantanal, aproveitamos a viagem e vamos ao terceiro álbum que não poderia faltar nesta lista: o Instrumental I de Almir Sater. Digo um (1) porque Almir fez dois discos instrumentais.

Lançado em 1985 pela extinta gravadora Som da Gente e relançado no final de 2022 nas plataformas de streaming, o disco traz essa pérola da viola instrumental. Ouça um trechinho…

Se você reconheceu esse som, provavelmente é porque assistia ao Globo Rural nas manhãs dos domingos das décadas de 80 e 90. Essa música era o tema de abertura.

O disco nasce de um trabalho de pesquisa realizado por Almir com a Comitiva Esperança, grupo formado por, Almir Sater, Paulo Simões e o violinista Zé Gomes que saem pelo interior do Mato Grosso do Sul pesquisando as manifestações musicais e culturais dessa região. Neste link você pode assistir ao documentário de NOME…. É um registro precioso de um Brasil que não existe mais. Por sinal, o mesmo que a Dona Helena viveu…

Como um dos resultados, nasce o disco Instrumental 1.

As inovações trazidas por esse disco no âmbito da viola caipira instrumental são imensas. Começando pela formação instrumental que acompanha a viola solista. Há de tudo um pouco: percussão, bateria, bateria eletrônica, berimbau, cordas, sopros, uma CÍTARA! efeitos, e ainda assim, a viola segue como protagonista. A produção musical e arranjos do Marcos Vinicius Marinho, o Vinicão, é impecável. Ele foi capaz de encontrar o espaço para cada instrumento e deixando a viola do Almir flutuando livre.

As composições do Almir são um tema à parte. Se nos dois discos anteriores desta lista as harmonias e melodias não fugiam dos centros tonais, Almir busca nas dissonâncias e tensões dos acordes um lugar de reflexão e se nota que o músico se sente bem aí nesse lugar.

Há de tudo um pouco, um pouco de Blues em Corumbá, o armorial em Vinheta do Capeta, o Tião Carreiro em Rio de Lágrimas, o rock progressivo em Luzeiro. Mas todas essas referências estão muito orgânicas e interiorizadas pelo artista. Alinhavadas pela música regional pantaneira.

O toque de viola de Almir é outro capítulo à parte. Até hoje é muito difícil de reproduzir. Uma técnica própria, que se situa entre muitas coisas, entre o toque de dedeira, sem dedeira, o toque com unha sem unha, entre o toque com palheta sem palheta… não entendeu? Nem eu! Até hoje olho e escuto ele tocando e fico sem entender. Desisti. Prefiro só admirar. Talvez por isso até hoje não terminei de estudar o Luzeiro…

Esse disco mostrou há 40 anos que a viola tem raízes mas pode ter muitas asas e voar longe.

TAVINHO MOURA | CABOCLO D’ÁGUA (1993)

viola caipira instrumental
Tavinho Moura -Caboclo d’água (Velas, 1993)

Chegamos aos anos 90, um período de grandes novidades na viola caipira instrumental. Surgem vários instrumentistas, muitos com formação universitária em música, buscando levar a viola a outros patamares. E a partir disso vão surgindo grandes projetos artísticos.

Um primeiro projeto, que surge de maneira inusitada, é o disco Caboclo d’água de Tavinho Moura.

O mineiro de Juiz de Fora começou sua vida musical dentro de um dos mais importantes movimentos musicais do Brasil e do mundo, o Clube da Esquina. Ao lado de Milton Nascimento e Cia, Tavinho compôs grandes canções e desenvolveu sua linguagem musical, mas sempre de olho na viola caipira instrumental. Em 1969, busca Renato Andrade para as gravações do filme O Homem do Corpo Fechado e a partir desse momento estreita relações com o mestre violeiro. 

Em sua trajetória, gravou discos, compôs trilhas sonoras e ao mesmo tempo foi aprendendo viola ouvindo os mestres mineiros, especialmente Seo Zezinho da Viola. Foi tentando imitá-lo que Tavinho foi dando vida às primeiras composições no instrumento. E é com essa bagagem que aceita a encomenda de uma companhia aérea para gravar um disco de viola.

Em 1993 uma companhia aérea da Bolívia, que não existe mais, queria gravar um disco com músicas tradicionais brasileiras para presentear seus clientes, e essa tarefa foi designada ao Tavinho Moura. E assim, meio que sem querer nasceu um dos discos mais importantes da viola instrumental, o Caboclo d’água. Tavinho conta que gravou o disco de maneira rápida. Entrou em estúdio com apenas quatro músicas prontas, entre elas Encontro das Águas feita em parceria com o amigo Almir Sater e Noites no Sertão com Milton Nascimento. As 11 músicas foram feitas nos dias seguintes no próprio estúdio, o famoso estúdio Bemol em Belo Horizonte.

A sonoridade de Tavinho com a viola é de uma preciosidade poucas vezes vista, pois ao mesmo tempo em que seu timbre evoca os sons dos interiores de Minas, de mestres violeiros como Zé Coco do Riachão, as harmonias apontam para inúmeras influências seja do Clube da Esquina, da MPB, do jazz. Danças e ritmos como o lundu ganham expansões harmônicas e melódicas, porém sem forçar a própria natureza dos gêneros. Como vestir uma roupa feita à medida por um alfaiate de alta costura.

Outro destaque é o diálogo, ou melhor a amálgama entre viola e o violão Beto Lopes, parceiro de Tavinho até os dias de hoje. Muitas vezes esse entrelaçamento é quase inseparável, de modo que fica difícil distinguir onde acaba um e começa o outro.

O certo é que a viola em rio abaixo de Tavinho do disco Caboclo d’água entrou para a história do instrumento, ainda que seja um disco, infelizmente, pouco difundido dentro da comunidade da viola. Porém influenciou muitas gerações seguintes.

PAULO FREIRE | RIO ABAIXO VIOLA BRASILEIRA (1995)

Viola caipira instrumental
Paulo Freire – Rio Abaixo (1995)

E dessa geração de violeiros influenciados e que lançaram álbuns muito importantes, destaco dois deles para fechar essa primeira lista.

E já que estamos com a viola afinada em rio abaixo aproveitamos para falar do disco Rio Abaixo – Viola brasileira do mestre Paulo Freire. Vai ouvindo, como diz o mestre.

Mas é complicado contar a história de um grande contador de histórias. Prefiro não me aventurar nisso para não cometer equívocos. Ouçam ele contando é muito melhor! Mas o que posso adiantar aqui é o que Paulo me contou uma vez, tomando café lá na casa dele, dos tempos que estudou violão clássico lá na França, quando assistiu aulas de grandes mestres da música erudita, tocou pela Europa, mas que foi no sertão do Urucuia que encontrou seu caminho, junto ao saudoso mestre Seo Manoel de Oliveira, o Seo Manelim.

Dos tempos de convívio no sertão, junto com sua bagagem musical, nasce em 1995 o disco Rio Abaixo – Viola Brasileira.

A fusão proposta aqui é ainda mais profunda, pois há de tudo um pouco. Há elementos de jazz, de rock e de experimentalismo. A instrumentação é ampla, entre cordas, percussão, baixo e bateria. O jeito de tocar viola de Paulo também é muito particular e difícil de explicar. É uma fusão do jeito de tocar do Seo Manoel junto com elementos da escola do violão clássico. Há uma aspereza cuidadosamente construída e cultivada. Ouça lá e me diga se não…

No repertório, podemos passear pelo interior de Minas Gerais através das danças e ritmos específicos do sertão do Urucuia. Toque da Inhuma, do lundu, do Rio abaixo. Há também a Dança do Maneiro Pau, assim como no disco do Tavinho. Mas há temas ainda mais profundos, com desenhos melódicos cheios de curvas como na música Seca. O experimentalismo da viola processada com efeitos em Chianti e em Lundus do Urucuia também é um elemento importante que já apontava para o futuro do instrumento.

Não à toa Paulo Freire ganha o prêmio Sharp desse ano como artista revelação.

IVAN VILELA | PAISAGENS (1998)

viola caipira instrumental
Ivan Vilela – Paisagens (1998)

Fechando a década de 1990, que particularmente eu considero uma das mais ricas da viola caipira instrumental, comento aqui um disco que também foi indicado ao prêmio Sharp. Falo do Paisagens de Ivan Vilela lançado em 1998. Afine a viola em cebolão em Ré e prepare os dedos para tocar esse repertório cheio de contraponto e polirritmias. Esse é um disco que conta uma história.

Ouvindo dá para perceber que da primeira à última música há não só um desenvolvimento do próprio músico com a viola, mas também da linguagem composicional. Nota-se com clareza também a bagagem do músico, desde sua formação em composição, o desenvolvimento como pesquisador de cultura popular e o convívio com grandes músicos. Está tudo ali, resumido na formação camerística de viola, violão, percussão, rabeca e flauta. E acho que o termo mais legal seja esse mesmo, música de câmera, pois, ainda que a viola seja a protagonista, é um trabalho em conjunto, mas não de banda e sim de grupo de câmara. Aliás, o grupo de câmera que está nesse disco é de altíssimo nível. 

O paisagens se destaca por inúmeras coisas, mas vou citar três.

Uma abordagem composicional que busca uma viola mais horizontal, ou seja, que prioriza o contraponto, às múltiplas melodias tocadas simultaneamente em detrimento de blocos de acordes. Tocar as músicas do Paisagens é mais sobre entender quais são as melodias postas em cada música e menos descobrir as cifras.

Dois: a inclusão do silêncio como elemento criativo. O paisagens nos ensina que a música ainda é sobre som e silêncio.

Três, o jeito de tocar viola e a busca por um timbre arredondado e polido.

Somando esses três pontos e mais um tanto de coisas que não cabem num só vídeo, surge um repertório fundamental para música de viola caipira instrumental, fonte de estudos para muitos violeiros, me incluo nessa.

Essa lista poderia ser expandida? Claro que sim. Não falei do Uróbodo do Roberto Corrêa, do Maracanãs do Levi Ramiro, do Pau Brasil do Gedeão da Viola…

Mas principalmente, se você gosta de viola, ouça esses discos, garanto que será uma jornada incrível

Bom é isso!

Um abraço e até a próxima.

Vinícius

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